
Há alguns anos quem passava pela avenida Maranhão, no trecho em frente ao cais do Troca Troca, apreciava um mural maravilhoso de Nonato Oliveira, o artista cujos personagens são sempre sertanejos de olhos profundamente azuis e piedosos. A obra de arte teve que dar espaço à outra obra, de construção, vultosa, necessária ao crescimento da cidade.
É quase certo que os operários incumbidos de destruir o muro que abrigava a criação de Nonato nem soubessem de fato o que representavam aquelas figuras. Para eles era apenas um muro a ser derrubado. Cumpriram ordens. Cegamente ou por desconhecimento de certos valores tidos como fúteis ou supérfluos.
Os operários, nesse caso, se assemelham ao pequeno exército nazista feminino que escolta um grupo de prisioneiras judias pelo interior da Alemanha em um trecho do livro “O Leitor”, de Bernhard Schlink.
Tendo que pernoitar em uma pequena vila numa noite muito fria de inverno, as oficiais e suas cativas, sob o comando de Hanna Schmitz, abrigam as judias em uma igreja próxima. A vila é bombardeada por aviões inimigos a igreja é incendiada. Trancafiadas por segurança, as mulheres morrem queimadas.
Anos depois encontramos Hanna vivendo tranquilamente em uma cidade alemã como se nada tivesse acontecido. A bela mulher balzaquiana envolve-se, então, com um jovem de 15 anos, com quem vive uma paixão tórrida, arrebatadora e cheia de rituais. É sob a ótica do então adolescente Peter que acontece a narrativa de “O Leitor”.
O excelente romance de Schlink inspirou o filme de mesmo nome que deu o Oscar de melhor atriz à Kate Winslet, que viveu a oficial Schmitz. Emocionada ao receber a estatueta, a atriz inglesa disse que sonhava com o prêmio desde criança; esqueceu de agradecer ao escritor alemão que criou um personagem misterioso, enigmático e por vezes cruel, mas que revela-se tão frágil ao longo do livro que nos leva a inocentá-la de todo e qualquer ato que tenha cometido em seu passado.
Bernhard Schlink não poupa o leitor. Usa uma linguagem direta e seca que “aprisiona” a cada página. Os capítulos são mínimos e o livro está dividido em três partes. Como usa o tempo psicológico para narrar os fatos desde a adolescência até á maturidade de Peter, abre mão das firulas e conta os acontecimentos sem subterfúgios nem rodeios. Cada revelação é um tapa na cara do leitor.
O texto do alemão, que em nada lembra a escrita detalhista e impressionista do conterrâneo Patrick Süskind, de “O Perfume”, deixa os fantasmas apenas para a consciência de Hanna, essa sim o único juiz aceito pela personagem.
Pelos crimes que cometeu, a oficial vai a julgamento, mas não reconhece nos acusadores nenhuma autoridade que possa definir seu castigo. Michael, agora um estudante de Direito, acompanha todo o processo até o seu desfecho. Nesse ínterim o leitor descobre que Hanna é analfabeta, desconhecia a máquina do Nazismo, apenas cumpria ordens, dadas à ela oralmente; talvez por isso não tenha entendido a carta enviada por seus superiores que ordenava a libertação do grupo de judias prisioneiras e o bombardeio que culminou com a morte de todas elas, com exceção de uma mãe e sua filha.
Custa-se a descobrir qual o tema de “O Leitor”: uma paixão entre um adolescente e uma mulher mais velha? A crueldade nazista? Um julgamento polêmico? Analfabetismo? No final surpreendente e emocionante descobre-se que Bernhard Schlink criou uma alegoria sobre a ignorância humana, dos “crimes” que falta de acesso ao conhecimento pode provocar. "O Leitor" aborda o assunto como uma lente de aumento.
Como Hanna Schmitz, os operários que colocaram abaixo o mural de Nonato Oliveira sem questionar. Não conheciam o artista. Pior: não conheciam o valor da Arte. Talvez um ou outro tenha admirado a pintura por alguns minutos antes do primeiro golpe, mas não a ponto de salvá-la. Estética não fazia parte de seu mundo e repertório. É compreensível: num país em que ensino ainda é um luxo para milhares de pessoas, assassina-se todo dia a possibilidade de evolução do ser humano como as judias queimadas pela ignorância de sua carcereira.